O "maniqueísmo" é uma concepção de ordem religiosa, oriunda da Pérsia do século III da era cristã, tendo em Maniqueu o seu grande ideólogo. A doutrina maniqueísta caracteriza-se pela percepção dualista do mundo como fusão do espírito e da matéria, representando, respectivamente, o bem e o mal. Comporta, registrar, entretanto, que, ainda hoje, a doutrina maniqueísta estende sua influência para alcançar nossa compreensão individual a respeito da realidade que nos circunda.
Então, numa análise crítica, primeiro é preciso definir o significado lingüístico de "maniqueísmo". Segundo o moderno dicionário "Houaiss", maniqueísmo quer dizer "qualquer visão do mundo que o divide em poderes opostos e incompatíveis".
A verdade é que assim pensamos praticamente todos nós. É uma manifestação da consciência coletiva. Temos o hábito ingênuo de rotularmos tudo de forma simplista, dividindo todas nossas impressões nos rótulos de "bom" e "mau" ou "bem" e "mal", traduzindo a dualidade herdada da doutrina maniqueísta. Assim, reduzimos a complexidade do mundo a uma divisão extremamente reducionista, simplificada na fórmula que confronta gêneros naturalmente antagônicos. Em síntese, é a redução de toda complexidade humana a uma cômoda equação bivalente, como se tudo pudesse ser visto como uma realidade de duas cores.
Assim não ocorre, não se podendo dizer se "feliz" ou "infelizmente". Mas a realidade é que os matizes das relações sociais (humanas) extrapolam, sensivelmente, a monótona percepção comentada.
A verdade é que as relações humanas são profundamente complexas, como complexo é o próprio homem, resultado de uma infinidade de experiências - instantâneas, individuais ou históricas, do gênero humano - que contribuem para seu constante aprimoramento. Não parece minimamente admissível que possamos reduzir a experiência humana a um equação bipolar. Tudo deve ser considerado à luz do que realmente é, ou seja, as gradações percebidas devem ser reproduzidas numa análise criteriosa, de molde a considerar as possíveis variantes sempre presentes em toda e qualquer complexidade social. Simplificando, nada é absolutamente "bom" ou inteiramente "mau", pois tudo é resultado de uma equação de "valores" que devem ser percebidos para a correta significação da realidade considerada. Numa determinada realidade histórico-geográfica (tempo/espaço), nossa percepção está, naturalmente, condicionada aos valores que nos são impostos pela cultura social, profundamente atuante em nossa formação pessoal. Ou seja, o resultado de qualquer julgamento estará, necessariamente, adstrito à nossa formação pessoal, considerada a constante influência do meio comum sobre nós mesmos.
Nessa vertente, tendemos ao raciocínio simplista, que define os fenômenos humanos à bivalência de "causa" e "efeito"; "certo" e "errado"; "ser" ou "não ser", enfim a toda forma de confronto simplista de opostos que se antepõem.
A partir do momento que nos conscientizamos do caráter extremamente questionável dessa percepção simplista, começamos a entender a verdadeira realidade lógica das mais variadas definições. Ou seja, nem tudo é intrinsecamente "mau" ou perceptivelmente "bom". E não se trata de "ficar em cima do muro", mas de entender a verdadeira natureza das coisas. Observemos que aquele que julgamos "mau", não raro, nos surpreende com um gesto amigável ou solidário, enquanto aquele, até então, tido como "bom", é capaz de atitudes que nos decepcionam, uma vez que o tínhamos por essencialmente "bom". Isso, inclusive, nos auxilia a digerir melhor as mais inúmeras realidades ou fatos que nos cercam. Como explicar a morte, considerando que o fim pode ser a oportunidade do recomeço? Como definir o fracasso, uma vez poder significar a possibilidade de uma nova tentativa, com investimento do aprendizado conquistado? O que poderá ser a decepção, além da lição que nos torna mais aptos e determinados às novas realizações?
Como é bem de se notar, a dualidade extrema pode levar a conclusões parciais e, muitas vezes, distorcidas, levando-nos a julgamentos precipitados ou injustos.
Por outro lado, o verdadeiro "bem" pode estar, justamente, na síntese dos dois (ou mais) elementos confrontantes. Às vezes, numa experiência não se pode renunciar a todas as possibilidades, devendo ser considerados todos os elementos que possam contribuir para o resultado almejado.
Trazendo a análise para a nossa realidade política - à qual nos cabe constante reflexão -, talvez devamos atentar para o nosso próprio conceito (ou preconceito?) de política, pois, num momento podemos tê-la como arte do egoísmo ou do altruísmo; perversidade ou beneficência; ódios ou alianças; honestidade ou desprendimento material... Como se pode verificar, todos (e outros) opostos relacionados podem ser adotados num conceito de política. Portanto, cabe a nós mesmos conferir os matizes que definirão uma adequada concepção sobre "política". Então, nada mais correto e aconselhável que uma revisão de nossas próprias convicções, de molde a possibilitar expressiva alteração no significado que possamos conferir ao termo "política". Quem sabe não é justamente a nossa aversão que explica a repugnância que caracteriza a nossa conduta diante da "política"? Mas, se somos nós mesmos que conferimos legitimidade (ainda que não sejam intrinsecamente "legítimos") aos políticos, como explicar nosso repúdio à política? Simples, algo em nosso comportamento justifica a falência do resultado apurado. Então, é fundamental que revejamos nossa própria atuação, de forma a nos prepararmos melhor para a participação que nos é absolutamente necessária, seja na dimensão individual ou coletiva.
Relembrando, então, Maniqueu, se a "matéria" e o "espírito" se opõem, então façamos algo para evitar que políticos desfrutem da matéria, nos deixando o "espólio" o mundo espiritual, pois se queremos aproveitar a "matéria", devemos aprimorar o "espírito". Apenas parece, mas não é contraditório. Sintetizando: é no nosso espírito crítico (permanentemente "alimentado" por informação correta), que podemos encontrar as armas para enfrentar adequadamente as más intenções dolosamente disfarçadas nos atos, apenas aparentemente benevolentes, de maus políticos.