quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A lei e a eficácia das leis


Antes de qualquer abordagem expositiva relativa à "eficácia" da lei, é preciso antecipar o próprio conceito de lei; e para entender a origem ou o conceito da lei, ou mesmo a sua razão de ser, é preciso, primeiro, examinar o "terreno" em que a lei terá incidência, no caso, a "sociedade".

Então, vamos a uma breve "introdução".

Num primeiro estágio de sua evolução, o homem era um "ser" absolutamente livre e solitário. A propósito, é preciso entender que a completa liberdade pode ser uma "realidade" cobiçada por muitos, porém, é preciso lembrar que esse almejado estágio da existência humana está, necessariamente, vinculado a uma supressão do meio social (só pode ser absolutamente livre quem está sozinho). É que, para conviver em sociedade, o primeiro requisito está atrelado à coexistência de interesses díspares, muitas vezes antagônicos. E para tanto, devemos abdicar de nossa plenitude volitiva (vontade), respeitando os interesses e a individualidade alheia. Este o grande "mistério" da convivência social: o respeito aos interesses e à individualidade alheia. E é precisamente de uma coexistência pacífica e harmoniosa que se tem a viabilização da sociedade. Em síntese, pode-se afirmar que toda manifestação de intolerância ou agressão ao semelhante, implica, necessariamente, num abalo à própria ordem social! Aqui, mais uma pequena digressão: agressão ou intolerância não tem a conotação exclusivamente física...

Então, como se visse carente de conviência social e inseguro contra toda sorte de perigos que o cercava (animais, homens ou grupos estranhos e mais fortes), aquele homem primitivo começou a formar os primeiros grupos sociais, talvez tribos ou grupamentos em que alguns indivíduos com interesses comuns esponteamente renunciavam a uma determinada parcela de sua própria "liberdade absoluta" para, com isso, se permitirem conviver com o semelhante, ou seja, com os demais "indivíduos" daquele meio social. Mas, como toda convivência plural exige determinado regramento (perceba que até os mais inocentes "jogos infantis" exigem certas regras para que possam acontecer), as primeiras normas foram concebidas a fim de garantir uma coexistência minimamente equilibrada, ainda que, num primeiro estágio, inequivocamente, rudimentar. Eis aí o momento inicial da concepção de uma determinada norma social, posteriormente definida como "lei". Assim, pois, a "lei" deve ser percebida (e é concebida) como um importante instrumento de regulamentação social, de molde a possibilitar um ambiente equilibrado e viável.

Retornando ao nosso "homem plenamente livre", devemos registrar que nesse estágio de sua existência, o homem via-se no que se denomina "estado de natureza". Muitas pessoas não sabem (talvez, a maioria dos cidadãos, principalmente, no Brasil...), mas ainda tentam viver num típico "estado de natureza", em que observam, exclusivamente, a própria vontade ou os próprios interesses, sem se importarem com as pessoas que os circundam, ou seja, o grupo social. E nesse caso, a regulamentação da convivência social se mostra, mesmo, imprescindível. Mas, mais que isso, mais que a previsão legal, a eficácia da lei deve ser o "bem" mais cobiçado... E este é o propósito deste modesto ensaio: esclarecer a importância da lei, mas, principalmente, os fatores que lhe determinam a eficácia (observância e respeito à lei, no meio social...).

Nesta breve introdução, admitida a idéia da gênese social e da necessidade de organização da respectiva convivência de seus integrantes, partamos para um enquadramento atualizado...

Da origem social até os dias atuais, muitas importantes etapas históricas foram percorridas pelo Homem em sua evolução pessoa e social. Assim, por ora, devemos abstrair tais "capítulos" da evolução humana, para entendermos o atual nível da complexidade orgânica social.

Essa mesma "lei", que num primeiro estágio social traduzia a necessidade de limitação dos interesses e vontades dos membros do grupo (justificando, ainda, a existência no regramento social), hoje é ditada pelo Estado politicamente organizado, em suas mais variadas manifestações políticas...

Considerando, pois, o Estado Democrático de Direito, deve-se lembrar que a "lei" não é um instrumento totalmente auto-suficiente, de forma que sua simples "existência" signifique a solução para o tema por ela regulamentado... Então, para que uma determinada lei seja eficaz (respeitada e efetivamente observada pelo grupo social), devem concorrer "fatores de eficácia da norma jurídica"! E, no caso, há uma regra geral que não pode ser ignorada: quanto mais efetiva se mostrar a presença desses fatores de eficácia , maiores serão as chances de eficácia da norma jurídica!

Observando, então, os "fatores de eficácia" das normas jurídicas (leis) - com os quais nossos agentes públicos (presidente, governadores, magistrados e legisladores, além dos próprios operadores do Direito) deveriam se preocupar - podemos distingui-los em "fatores instrumentais" e "fatores sociais". Antes, porém, de adentrarmos numa explanação mais técnica, queremos registrar que os citados "fatores" constituem a força motriz que permite a própria efetiva presença da norma perante a sociedade, de molde a regulamentar, eficazmente, o respectivo convívio social.

Ainda que possamos dissertar mais pormenorizadamente num próximo "encontro", adiantamos o que sejam os mencionados "fatores", lembrando que a defesa da própria organização jurídica (regulamentação social) cabe aos membros do grupo social, tanto mais atuantes quanto o forem os seus "representantes" constituídos:

"Fatores Instrumentais" de eficácia da norma jurídica (lei) -

a) Divulgação. O conteúdo da norma deve ser apresentado à sociedade pelos meios adequados. Assim, a sociedade será devidamente informada a respeito do que a lei quer regulamentar.

b) Conhecimento. É muito importante que os cidadãos tenham efetivo conhecimento do que prevê determinada lei. Nesse caso, não se tem, exclusivamente, o conhecimento provindo da "divulgação", mas uma orientação adequada, de forma a consolidar a percepção das pessoas quanto à necessidade daquela regulamentação legal (tem mais vinculação com a orientação educativa da sociedade).

c) Perfeição legislativa. A conformação física da norma (redação) deve ser absolutamente clara (isenta de ambigüidades ou contradições) e plenamente transparente, de forma que o tema a ser regulamentado seja perfeitamente refletido naquela previsão legal. As precárias redações legais traduzem-se na alegria de advogados, que, assim, encontram, facilmente, as famosas "brechas" legais que acabam por comprometer a eficácia da previsão legal (lei) questionada.

d) Estudos preparatórios. Qualquer colégio legislativo sério, certamente, atentará para a necessidade de que sejam realizados estudos prévios sobre o tema a ser regulamentado. Não se pode, simplesmente, aprovar uma determinada lei, sem um estudo criterioso a respeito do tema a ser regulamentado. Aquela sociedade precisa daquela norma...; o grupo social encontra-se amadurecido para determinada previsão legal...; existem instrumentos adequados para a fiscalização da observância legal...

e) Preparação dos operadores. Qualquer lei, precisa encontrar um grupo tecnicamente preparado para a fiscalização de seu preceito e aplicação de suas conseqüências jurídicas (sanções). Assim, policiais, advogados, promotores de justiça, magistrados, e outros, deverão ser devidamente orientados sobre a adequada regulamentação legal.

f) Conseqüências jurídicas. Para que uma determinada norma seja regularmente observada pela sociedade, é importante que se faça "acompanhar" por regras que estimulem a sua eficácia (efetiva observância pelo grupo social). No Brasil, o Poder Público já utiliza o mecanismo, sobretudo, na regulamentação tributária (o pagamento de tributos, à vista, pode determinar a redução de percentuais do valor devido); por outro lado, tem-se certas normas que auxiliam na eficácia, como a "delação premiada", diminuição de pena para presidiários que estudem, etc.

g) Expectativa de eficácia da sanção. Tão importante quanto o preceito legal (núcleo da lei, que determina o que se deve, ou não, fazer) é a sanção que usualmente lhe acompanha, encarregada de conferir uma conseqüência pelo seu descumprimento. Ora, é óbvio que o indivíduo se sentirá tanto mais intimidado pela previsão legal, na medida em que se assegure de que sua violação, seguramente, lhe acarretará a conseqüência anunciada pelo seu descumprimento (sanção legal prevista. Ex.: se o sujeito mata alguém, ficará passível de sofrer uma condenação criminal prevista entre 6 e 20 anos). Então, se o indivíduo acredita que poderá "não sofrer a conseqüência legalmente anunciada", certamente, não se sentirá intimidado ou "estimulado" a se conduzir conforme a prescrição legal.

Relacionados às condições de vida de determinado grupamento social - e, como tal, submetidos à certo momento histórico (estágio da evolução cultural da sociedade) -, os "fatores sociais" surgem como importante elemento para a garantia de eficácia da norma legal. E assim, as relações sociais e a atitude do poder político diante da sociedade, podem influenciar, de forma decisiva, na eficácia da lei.

"Fatores sociais" de eficácia da norma jurídica (lei) -

h) Envolvimento da sociedade (cidadãos) no processo de elaboração e aplicação da lei. As leis que regulamentem algo que é pleiteado pela própria sociedade, têm muito maior possibilidade de virem a ser efetivamente respeitadas pelos indivíduos. É o que se poderia rotular como "legitimidade" do processo legislativo. Quanto mais próximo dos interesses do grupo social, mais respeitado e admirado há de ser o respectivo governante. Todavia, numa sociedade plural, é preciso administrar as diferenças (eventuais interesses antagônicos), pois estas podem se constituir num entrave para uma previsão legal (lei) imune a contradições ou ambivalências.

i) Atualidade da regra legal. As leis que exprimem regras que contenham valores "antigos" ou "inovadores", de forma geral, padecem de maior dificuldade quanto à sua eficácia (observância pela sociedade). Assim, o legislador deve estar atento à contemporaneidade entre o estágio de evolução social e os valores que pretende proteger com a previsão legislativa (lei). Por exemplo, no Brasil, onde somente agora despertamos para uma consciência ambiental, de pouco tem adiantado uma legislação ambiental extremamente evoluída...

j) Coesão social. Ah..., este, sim, constitui um fator de extrema importância, não somente para a eficácia das normas jurídicas (leis), mas, também, para a própria convivência social, num ambiente harmonioso e satisfatoriamente equilibrado. Quanto menos conflitos hajam em uma sociedade, num determinado momento histórico, mais equilibrado, naturalmente, será o ambiente social, com mais seguras possibilidades de eficácia das regras fixadas para sua regulamentação. A propósito, o grande sociólogo francês, Èmile Durkheim, já discorreu sobre o tema, com inegável competência. Muitos a ele se referem como "solidariedade social".

k) Adeqüação da lei ao momento histórico. Antes de se confunda com a já referida "atualidade da regra legal", é importante salientar que, agora, não se está avaliando a contemporaneidade com os valores culturais vigentes, mas com as relações de força e com a própria realidade social, no sentido de que uma previsão legal encontrará maior receptividade, se observados os verdadeiros anseios do grupo social, sempre consideradas as forças atuantes em seu meio.

Eis, portanto, em modesta síntese, o que se tem como alguns importantes fatores para a efetiva observância das leis, lembrando que as leis nunca devem ter uma conotação exclusivamente impositiva (o que, não raro, desperta antipatias e condutas rebeldes - movimentos justificados pela a teoria de Karl Marx, "conflito social"), mas, sobretudo, necessária, para viabilizar um convívio social saudável e satisfatoriamente equilibrado.
É uma percepção sociológico-jurídica que deve ser cuidadosamente examinada pelas autoridades públicas e pelas lideranças sociais. E, para tanto, nossa bibliografia especializada oferece importante suprimento.

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